Senhoras e senhores Sejam muito bem vindos a cidade de São Paulo Agora são 21:49 E fazem 17 graus lá fora. Na cidade da garoa, Terra da oportunidade A caminho de casa Olhando um pouquinho mais para direita você pode ver um “homem” de gorro de 4 em cima de 5 sacos de lixo rasgando-os com sua própria boca. aquilo que se derrama em sua cavidade bucal se deleita em droga barata devendo ou devida injetada, consumida, cheirada. me engasguei com um pedaço de papel. agora escorre um liquido amargo pela minha boca tenho de engolir o outro saco agora este foi um problema maior pois vinha de brinde com duas baratas que agora já se alojam no meu buraco e brincam de toboágua. quando me levantei nada disso vi apenas vomitei tudo que podia. era como se fosse um exercício compensatório daquele que fazia agora há pouco agora a calçada que era úmida é liquida mente amarela, mas talvez amanheça laranja. volto para meu pano. boca suja hálito de barata uma sobrou dentro do meu bolso! engoli, claro é crocante. engulo na parte que o liquido ocre começa a se dissolver e deixa de ser pasta para estar digerida é um longo caminho até minha barriga. mas como disse voltei ao meu cobertor trapo disposto em cima de papelões sadia: “seu dia a dia mais gostoso” noite passada alguém me bateu na cabeça com um pedaço de cano roubou meu papelão porco. aí lembrei que estava com fome assim fui ao beco caçar baratas. achei. mesma experiência que acabei de descrever. aí de noite senti aquela fome que você deve ter visto mas agora já é tarde demais certeza que aquele vomito não amanheceu laranja amanheceu foi cinza Ou olhando para esquerda, pode simplesmente ignorá-lo Vamos dar um jeito nele E seguir Afinal Aqui é São Paulo Terra da morte Quer dizer Prosperidade! Todos que vem aqui saem felizes Aproveitem a viagem. onde estou?
Nota
Escrevi essa miscelânea experimental assim que cheguei a São Paulo e me deparei com uma cena assombrosa. Enquanto transcrevia esse texto do papel para o digital, me questionava a todo momento se valia mesmo a pena publicá-lo. Principalmente devido a um processo completamente pertinente, que é a questão do “lugar de fala”1, e se a minha pessoa, ou mais especificamente, meu corpo, é capaz de abordar com propriedade empírica certos tópicos.
Olhe: nem me autoafirmar como poeta sei se posso, ainda. Então não venho aqui com nenhum viés academicista, escrever verdades, fatos ou histórias únicas. Coube a esse texto a perplexidade que qualquer ser com a mínima humanidade teria ao ver o estado de um cidadão entorpecido, rasgando lixo com a própria boca para poder se alimentar. Escrevo este texto debaixo de um teto seguro, aquecido e privilegiado. Não posso falar — neste caso, escrever — no lugar de quem sofre, da forma mais extrema, os impactos cruéis do capitalismo e da desigualdade social. O que posso expressar, e aqui transmito, é como uma miséria mental se instala quando se passa por momentos em que há certeza de que a humanidade falhou. Que tudo está errado.
Então, obviamente, é um texto sobre incômodo. Sentir ele invadindo seu corpo como uma náusea. Acho que explicar e destrinchar um poema faz com que ele perca um pouco de seu poder. Mas parte dele é narrada em primeira pessoa porque nos forçamos a perder a capacidade de empatia por pessoas em vulnerabilidade.
Há um elefante na sala em que vivemos. Na Santa Cecília, no centro de São Paulo, ou em todo o Brasil. A situação social deste mundo vem se tornando cada vez mais alarmante. Mais alarmante, hipócrita (afinal, todos somos muito), e metaforicamente equivalente a estar dentro de um tanque d’água que enche cada vez mais e fará todos nós nos afogarmos.
Além disso, fiquei relutante com o fato de estar começando agora esta newsletter e projeto com tópicos e textos “sensíveis ou pesados demais” para entregar ao público geral. É por conta de sentimentos como esse — isto é, termos que manter uma imagem passiva e suavizadora — que decidi publicar este texto.
A filósofa, escritora e ativista Djamila Ribeiro tem um livro com o mesmo título, ampliando e discorrendo muito prolificamente sobre o assunto no Brasil, o qual serve incrivelmente para abrir essa interessante discussão e foi usado como referência bibliográfica para tratar do assunto nesta introdução.
IMPORTANTE: TODOS OS DIREITOS DE IMAGEM DA CAPA RESERVADOS AO RENE BURRI: São Paulo, Brazil (Men on Rooftop), 1960